terça-feira, 20 de setembro de 2011

Pacto com Deus e o replicante católico

por Alysson Muotri - categoria Espiral
Site G1

A espécie humana sempre foi curiosa por robôs, especialmente aqueles com aparência humana, como os replicantes do clássico Blade Runner. Não sou diferente e, quando criança, cheguei a construir diversos robôs com caixas de papel e pedaços de brinquedos quebrados. Essa fascinação talvez exista porque nos identificamos com robôs, passamos nossas emoções aos objetos fisicamente parecidos com a gente. Existe algo de místico quando nos aproximamos dos humanoides, como se fossem, literalmente, parte humanos. Interessante notar que um dos primeiros replicantes teve uma origem religiosa, a partir de um pacto com o criador.

Estamos em 1562. Naquele ano, o homem mais poderoso do planeta, o Rei Filipe II, encontra-se numa delicada situação. Basicamente, ele era o cara. Amigão do Papa, controlava toda a América e boa parte da Europa, as Filipinas recebem o nome em sua homenagem e por aí vai. Esse rei tinha um filho, o príncipe espanhol Dom Carlos, com então 17 anos. A traição motora adolescente foi responsável pela queda do príncipe das escadarias do palácio, machucando gravemente a cabeça numa porta. Não parecia grave, estava inicialmente consciente, mas com o tempo a cabeça começa a inchar e ele tem delírios, espasmos e vai perdendo a visão. Acaba ficando completamente cego, fraco.

Toda a Espanha fica agitada. A noticia é vista como um castigo divino e as pessoas começam a jejuar, participar em cerimonias religiosas duvidosas entre outras coisas. Imediatamente, o rei convoca os melhores médicos do mundo para a Espanha. Esses médicos tentam de tudo, fazem um buraco no crânio para aliviar a pressão, sangrias, tentam todo tipo de medicamento…nada funciona. Concluem que o garoto está morrendo. A incerteza da cura cria um estado de agonia sobre o futuro do reino.

Dizem os relatos que o rei ajoelha-se perto da cama do filho e faz um pacto com Deus. O pacto é o seguinte: se Deus fizer o milagre de curar seu filho, ele, o rei, fará um milagre e oferecerá para Deus. Parece pretensioso da parte do rei, mas lembre-se que ele é visto como um super-homem, outro deus entre os mortais. Passa uma semana e o príncipe recupera a visão. Passa um mês e ele está normal, como se não tivesse caído. Assim que recupera as forças, ele conta pro rei sua bizarra experiência enquanto estava inconsciente. Relata ao pai que teve um sonho, uma visão de uma figura humana, um monge segurando uma cruz. No sonho, o monge se aproxima dele deitado e diz que tudo vai ficar bem. A história é confirmada por uma testemunha que ouviu o príncipe murmurar a conversa com o monge durante um dos delírios noturnos.

Dom Carlos recupera-se e a história se espalha. A questão que todo mundo tem é: quem seria o monge que visitou o príncipe durante a beira-morte? A descrição do príncipe não é de um monge genérico. Ele descreve claramente que o monge que o visitou tinha a cabeça raspada, nariz pontudo, olhar destemido, tipo de hábito, mesmo a descrição da cruz é feita nos menores detalhes. Por mais surreal que pareça, as pessoas reconhecem quem é o monge: um frei local que morreu 100 anos antes, chamado Diego de Alcalá. Essa figura sagrada está associada a dezenas de milagres. Esse mesmo padre que abençoou a cidade de San Diego, na Califórnia, durante a colonização espanhola. Um verdadeiro mito católico cujos restos mortais tem poderes de cura.


Com todas essas evidências, o rei agora tem que fazer bonito e apresentar um milagre em contrapartida, para honrar seu pacto divino. Para isso, o recruta um grande e mundialmente renomado relojoeiro da época e pede para que ele faça uma versão mecânica de Diego de Alcalá, um monge mecânico ou um padre robô, como queira. Encontrei-me com esse robô recentemente, em visita ao museu Smithsonian, na capital americana. Esse autômato de 450 anos está em boas condições e continua funcionando. O robô foi feito de ferro e madeira, tem o rosto esculpido em semelhança ao padre original, com nariz fino, cabeça raspada e o olhar focado. Anda, um pé depois do outro, com o hábito, o terço, a cruz, as sandálias. Ele se movimenta lentamente, a boca mexe como se estivesse rezando, muda de direção, mexe um braço como se estivesse benzendo e o outro batendo no peito – o ato da mea culpa. Depois de alguns passos, levanta a cruz aos céus e a beija. Faz isso repetidamente, como um cristão perfeito.

É justamente aí que talvez esteja a resposta para uma pergunta que me deixou bem curioso. Porque o rei, ao invés de levantar uma enorme catedral ou conquistar outros territórios em nome da igreja, optou pelo replicante? Uma interpretação seria que o rei queria dividir os poderes de cura com seus súditos. Todo o maquinário do robô está escondido debaixo do habito, criando uma ilusão de autonomia, um milagre. Outra possível interpretação é que o robô seria uma máquina incansável de rezar. Rezando sem parar, o Rei teria delegado ao robô a tarefa cristã da reza, de pedir perdão e agradecer a Deus pela recuperação de seu filho. Estaria ele tentando iludir Deus? Por fim, uma resposta alternativa seria a da criação de um cristão perfeito, para servir ao criador através do método católico da reza e repetição ritual. O robô seria a imagem ideal do adorador divino, humanamente impossível.

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