A leishmaniose deixou de ser uma doença de ocorrência
apenas em áreas consideradas remotas. Nos últimos 30 anos, a mazela avançou
sobre os centros urbanos e hoje se encontra fora de controle no Brasil e no
mundo. Para se ter uma ideia de sua gravidade e do seu avanço no país, a
enfermidade é um dos maiores problemas de saúde pública do estado do Pará e já
chegou ao Sul — região antes considerada de difícil adaptação dos insetos
transmissores, por conta das baixas temperaturas. Além da transmissão
descontrolada, outro problema, talvez ainda mais grave, aflige a sociedade: a
falta de um tratamento adequado e eficaz contra a doença. A saída, porém, pode
estar na própria natureza, mais especificamente, nas costas de anfíbios. Uma
pesquisa brasileira indica que uma substância encontrada na secreção desses
animais tem ação potente contra o protozoário que provoca o
mal.
A descoberta foi feita por José Roberto Leite,
coordenador da equipe do Núcleo de Pesquisa em Biodiversidade e Biotecnologia da
Universidade Federal do Piauí (Biotec/UFPI), após testar a substância em células
infectadas pela leishmania. “Entre dezenas de outras substâncias testadas,
encontramos uma que pode dar origem a um fármaco muito mais eficaz que os
existentes hoje”, afirma o pesquisador. A molécula se destacou contra a
leishmaniose tegumentar, tipo da doença que se manifesta na
pele.
A substância à qual Leite se refere é a dermaseptina
01, e foi extraída da secreção produzida pela Phyllomedusa nordestina, perereca
de cerca de 5cm de comprimento muito comum no Delta do Parnaíba, no Piauí.
Segundo o pesquisador, o líquido extraído do dorso do animal tem alto poder
antimicrobiano, sendo capaz de protegê-lo de bactérias e fungos. O ambiente
úmido e cheio de matéria orgânica em que os anfíbios estão imersos na quase
totalidade de sua vida é ideal para a proliferação de bactérias comensais, que
vivem na parte externa do corpo dos animais. Assim, o desenvolvimento de um
sistema imunológico eficaz foi essencial para o sucesso evolutivo de espécies da
ordem dos anuros — sapos, rãs e pererecas.
Sabendo disso, os cientistas focaram os estudos na
identificação das substâncias presentes na secreção e na forma como elas atuam
sobre micro-organismos patogênicos. “A ideia é conhecer essas substâncias
antimicrobianas, sua estrutura molecular, e tentar mimetizar seus efeitos
antibióticos contra bactérias patogênicas ao homem”, descreve Leite. Esse
esforço de prospecção se iniciou em 2002, com anfíbios do Cerrado, quando o
especialista integrava uma equipe de pesquisadores na Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Pouco tóxica
Os anfíbios possuem em sua região dorsal uma série de glândulas granulares, especializadas na produção de veneno. Leite explica que essas estruturas produzem diversas classes de moléculas de interesse, principalmente peptídeos — biomoléculas formadas pela ligação de dois ou mais aminoácidos. No caso da Phyllomedusa nordestina, há mais de 20 substâncias no peptídeo que foram isoladas e estudadas uma a uma (veja quadro).
Os anfíbios possuem em sua região dorsal uma série de glândulas granulares, especializadas na produção de veneno. Leite explica que essas estruturas produzem diversas classes de moléculas de interesse, principalmente peptídeos — biomoléculas formadas pela ligação de dois ou mais aminoácidos. No caso da Phyllomedusa nordestina, há mais de 20 substâncias no peptídeo que foram isoladas e estudadas uma a uma (veja quadro).
A identificação da ação da dermaseptina 01 foi feita
depois de ser testada nas células infectadas pela leishmaniose. Em 24 horas, a
substância conseguiu acabar com o protozoário da doença. “Essas moléculas têm se
mostrado muito potentes contra a leishmaniose tegumentar, além de apresentar
menos efeitos colaterais contra células humanas, ou seja, baixa toxicidade”,
afirma o coordenador da Biotec.
A toxicidade é um dos gargalos no tratamento contra a
leishmaniose no mundo. Os dois únicos remédios existentes contra a doença trazem
efeitos colaterais extremamente prejudiciais ao homem. Para se ter uma ideia do
nível tóxico de tais medicamentos, o índice de mortalidade de pacientes que
fizeram uso do tratamento é entre 5% a 20%. “Por isso, a dermaseptina 01 tem nos
dado a expectativa de que, a partir dela, possam surgir uma classe de
medicamentos eficazes contra a doença”, acredita
Leite.
Nanoestruturas
Nanoestruturas
Para que essa substância se torne mais eficaz contra
a doença, os pesquisadores criaram nanofilmes com espessuras semelhantes a uma
membrana natural que, aplicada sobre a pele, libera aos poucos a dermaseptina
01. “Para atacar a célula, a dermaseptina 01 tem de atravessar a parede celular.
Assim como nos nanofilmes artificiais, já podemos analisar como se dá o processo
na membrana celular da leishmania”, explica Valtencir Zucolotto, professor do
Instituto de Física de São Carlos (IFSC/USP) e coordenador da rede Nanobiomed,
que estuda plataformas nanotecnológicas aplicadas à medicina.
No Núcleo de Pesquisa em Biodiversidade e
Biotecnologia, no Piauí, os cientistas desenvolveram um tipo de nanofilme feito
da goma de cajueiro, na qual a substância pode ser inserida para chegar à célula
e combater o protozoário. “Pretendemos utilizar esse material de caráter
regional como uma membrana antiparasitária em feridas de pacientes com
leishmaniose cutânea, aproveitando, além das propriedades do peptídeo, os
efeitos da goma de cajueiro purificada que possui atividade antimicrobiana e
antioxidante, já comprovadas por outros trabalhos de nosso grupo”, completa
Leite.
O presidente da Sociedade Brasileira de Medicina
Tropical (SBMT) e doutor em saúde pública pela Universidade de Harvard, Carlos
Henrique Costa, mostra-se animado com os resultados da pesquisa e acredita que o
estudo dos peptídeos possa originar novos medicamentos, sobretudo contra outras
doenças tropicais. “Os anfíbios conseguiram sobreviver às grandes catástrofes,
muito por conta dos peptídeos que eles produzem — inimigos naturais dos
micro-organismos patogênicos.”
Costa ressalta a importância de pesquisas sobre a
leishmaniose por causa da transmissão descontrolada, já que o inseto transmissor
da doença se ada pta bem às condições urbanas. “Ele pode se transforma no novo
Aedes aegypti (mosquito transmissor da dengue) muito mais rapidamente do que
imaginamos”, alerta. “Toda pesquisa em busca de produtos farmacológicos traz
esperança, pois não temos como combater a doença, que está se expandindo”,
enfatiza o presidente da SBMT.
Tipos
A leishmaniose pode ser do tipo tegumentar e visceral. No primeiro caso, provoca lesões na pele e, em casos mais graves, ataca as mucosas do rosto, como nariz e lábios (leishmaniose mucosa). A manifestação visceral afeta os órgãos internos, causando febre, emagrecimento, anemia, aumento do fígado e do baço e imunodeficiência (diminuição da capacidade de defesa do organismo contra outros micróbios).
A leishmaniose pode ser do tipo tegumentar e visceral. No primeiro caso, provoca lesões na pele e, em casos mais graves, ataca as mucosas do rosto, como nariz e lábios (leishmaniose mucosa). A manifestação visceral afeta os órgãos internos, causando febre, emagrecimento, anemia, aumento do fígado e do baço e imunodeficiência (diminuição da capacidade de defesa do organismo contra outros micróbios).
Fonte: Correio Braziliense
Edição: Assessoria de Comunicação CFMV
Edição: Assessoria de Comunicação CFMV